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À conversa com... Seriluce Gomes


Seriluce, seja bem-vinda à nossa rubrica À conversa com…

Nesta rubrica promovemos entrevistas inéditas com autores nacionais, cujo propósito primordial é fazer com que as suas palavras alcancem novos leitores.


1. Para começarmos, eis a pergunta que se impõe: como é que nasceu o gosto pela escrita?


As palavras sempre me fascinaram. Tudo começou ainda na minha infância, quando a minha avó paterna, Anezia Barbosa, insistiu em me ensinar a escrever e a ler. Me lembro de suas reclamações ao colocar-me a ler e a escrever algumas letras em cadernos de linhas largas, enquanto eu tentava conhecer as letras e juntá-las para formar as minhas primeiras escritas. Enquanto isso, ela contava-me histórias sobre as tais letras que eu estava a escrever. Apesar de sua pouca escolaridade, minha avó me incentivou a conhecer o fascinante universo das palavras! Por isso, ela será sempre será lembrada por mim como o meu ponto de partida para o mundo das palavras.

Não pretendo ser exemplo para ninguém! Mas acredito e defendo que, todos os pais e avós deviam incentivar suas crianças a conhecerem o maravilhoso mundo das palavras, levando-as a desenvolverem o gosto pela leitura.

Na minha adolescência, eu sonhava em escrever um livro. Até escrevi um conto à mão, em um caderno, mas ele se perdeu ao longo da vida por falta de incentivo. Então, quando eu tinha mais ou menos 17 anos, já quase finalizando o meu ensino médio, comecei a escrever roteiros para peças teatrais, para grupos de teatro de igrejas. Mas, sempre alimentando o sonho de escrever um romance, baseado em fatos verídicos.


2. Como surgiu o ímpeto de escrever esta obra e de a partilhar com o público?


A história da violência contra os negros e da escravização dos africanos no Brasil Colonial me chamou a atenção ainda na minha infância, quando conheci a obra “Aplicação do Castigo do Açoite”, do pintor francês Jean Batiste Debret, do século XIX.

E a aversão despertou em mim, o desejo de escrever sobre o Guisando, quando li sobre o processo contra este escravo forro.

Conheci o processo, quando cursava o Mestrado em História Moderna e Contemporânea, na Universidade de Lisboa. Tinha-me sido solicitado um documento inédito para escrever a minha tese de conclusão do curso. Então, foi no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde me dirigi para procurar um Objeto de Estudo relacionado com a história do Brasil Colónia, que me deparei com a sinopse do processo do preto forro Matias Gonçalves Guisando. Me intrigou a descrição de um desenho diabólico, que fazia parte da mandinga do dito preto, que havia sido preso no Recife, por usar um patuá. Por isso, solicitei imediatamente a digitalização de todo o documento.

As minhas expectativas se confirmaram. Me deparei com um processo riquíssimo em informações sobre a cultura da sociedade da antiga Vila do Recife no início do século XIX. Estudá-lo me obrigou a me debruçar sobre este documento com muito afinco. Graças à orientação do Professor Dr. José Horta e do Professor Dr. Vítor Serrão, ambos Professores da FLUL, consegui avançar na leitura e compreensão do meu achado.

Depois da leitura paleográfica de todo o processo 14649, pertencente ao ANT-TSOL, e da transcrição do mesmo, parti para a pesquisa online. Encontrei, então, na Revista da UNICAMP, um artigo sobre Matias Gonçalves Guisando, escrito pelo Professor Dr. Carlos André Cavalcante e pelo Professor Dr. Luiz Mott, que menciona outro documento sobre o caso de Guisando, que faz parte dos Livros Régios de D. João VI, no Arquivo Histórico do Estado do Pernambuco, na Cidade do Recife. Desde os primeiros contactos, o Professor Dr. Carlos André Cavalcante tem sido uma mão amiga e uma bússola a direcionar as minhas pesquisas.

Depois de saber da existência de uma outra fonte referente ao processo de Guisando, saí de Lisboa e fui até à cidade do Recife, ao Arquivo de História do Estado do Pernambuco. Aí, fui muito bem recebida por todos os funcionários que disponibilizaram todo o material por mim solicitado.

Feita a transcrição dos Documentos Régios referentes ao caso de Matias Gonçalves Guisando, iniciei a reconstrução do seu contexto social, para melhor compreender o desenrolar deste processo, que durou aproximadamente dez anos. Percebi que Guisando era apenas uma pedra pequena dentro de um tabuleiro gigantesco, que era o Império Português e o seu poder naquele tempo, mas uma verdadeira pedra na engrenagem por não se ter deixado abater pelas limitações impostas pelo Estado Português, aliando-se a quem queria mudar o curso da história daquela Capitania.

Para os estudiosos de História local, o caso de Guisando pode parecer um facto corriqueiro, que envolveu as Justiças Eclesiástica e Régia da Capitania do Pernambuco, no início do século XIX, e apenas mais um negro alforriado que lutava pela liberdade dos seus irmãos de cor. Os documentos referentes a esse período da história daquela Capitania mostram que o caso Guisando foi só mais uma vertente do preconceito praticado contra os milhões de africanos no Brasil Colónia. Porém, sem vitimização e sem se deixar limitar pelos paradoxos sociais, Guisando se mostrou ao mundo como um guerreiro com a sua força e a sua sabedoria, lutando contra um Império em decadência e uma justiça morosa e negligente.

Eu resolvi narrar este caso de Guisando afim de despertar nas pessoas o interesse em conhecer um pouco melhor a história do Pernambuco Colonial e principalmente a atuação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em terras brasileiras contra a crença dos negros.


3. Como correu o processo de escrita desta obra? Partilhe connosco um pouco sobre essa experiência.


O processo de escrita desta obra foi composto por uma longa caminhada. Depois de longo período de pesquisa para escrever uma tese e olhar para toda aquela riqueza de informação, saber que pouco se escreve ou escreveu sobre essa fase da História do Pernambuco e o prelúdio da revolução de 1817, na Vila do Recife, aproveitei as informações contidas no processo sobre uma segunda acusação contra aquele preto forre e a transformei num elo entre ele e movimentos sociais de então. Isso resultou nesta obra, que tanto me orgulho de contar. Foi uma longa caminhada entre bibliotecas e arquivos históricos, no Brasil e em Portugal.



4.Guisando, uma obra que permitirá ao leitor conhecer a convivência entre os colonos na Antiga Vila do Recife do início do século XIX e perceber como o Império Português agia naquela Capitania do Pernambuco.

De onde surgiu a vontade de falar sobre este tema?


A vontade de escrever sobre o tema já existia dentro de mim. Por não aceitar a escravização e a injustiça aplicadas aos negros e aos africanos. Mas a oportunidade de conhecer e analisar o Documento 16469 do ANTT, um processo do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, contra o preto forro Matias Gonçalves Guisando, de 20 de dezembro de 1803, me possibilitou a realização desse sonho e se ampliou, quando tive possibilidade de aceder aos Documentos Régios, contidos no Livro Régio de D. João VI, do ano de 1810, que fazem parte do Arquivo Estadual do Pernambuco. Depois de pesquisar tais documentos, percebi que nos materiais continham informações muito ricas. O suficiente para escrever um Romance Histórico. Então me debrucei a pesquisar o contexto desse pobre homem, que tanto lutou pela sua liberdade. Daí resultou essa obra literária.


5. Quais são os seus projetos para o futuro? Os leitores poderão contar com novas obras e dentro do mesmo registo ou prepara algum desafio?


Os projetos para o futuro são a divulgação do Guisando em todos os países de língua portuguesa ou, quem sabe, em todo o antigo novo mundo, onde os europeus utilizaram mão-de-obra africana como escrava e sua cultura africana foi suplantada pelo poder das Inquisições Portuguesa e Espanhola.

Temos vários outros projetos rascunhados e alguns já estão em andamento. Entre eles, está o nosso próximo Romance Histórico, que já é um grande desafio por sua temática. Será sobre o segundo quartel do século XVIII, antes do terremoto de Lisboa.


6. Qual a mensagem que gostaria de partilhar com quem nos está a ler?


Guisando é uma obra de ficção que pretende chamar a atenção dos leitores para a violência contra os negros nos tempos do Imperialismo Português, quando o Estado e a Justiça Eclesiástica praticavam injúrias contra os seus colonos. Mesmo para os estudiosos de História local, o caso de Guisando pode parecer um facto corriqueiro, que envolveu as Justiças Eclesiástica e Régia da Capitania do Pernambuco, no início do século XIX, e apenas mais um negro alforriado que lutava pela liberdade dos seus irmãos de cor. Os documentos referentes a esse período da história daquela Capitania mostram que o caso Guisando foi só mais uma vertente cruel preconceituosa praticada contra os negros daquele tempo. Porém, O negro Guisando deixou-nos uma lição. Ele não se dobrou à vitimização e nem se deixou limitar pelos paradoxos sociais daquela época. Nos mostrou sua coragem e lutou sua guerra por cultura, seu conhecimento, armando assim uma batalha contra um Império Português decadente e uma justiça morosa e negligente que imperava naquela época.

Matias Gonçalves Guisando nos deixou um legado de resistência e luta. E com esta obra espero inspirar os leitores a acreditarem no poder da resistência para combater as desumanidades, mudar o rumo da história dos homens e construir uma sociedade mais digna e cheia de esperança para todos.


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