À conversa com.. Ricardo Alexandre Gomes

Ricardo, seja bem-vindo à nossa rubrica, À Conversa Com…
Nesta rubrica promovemos entrevistas inéditas com autores nacionais, e cujo propósito primordial é fazer com que as suas palavras alcancem novos leitores.
1. Para começarmos, eis a pergunta que se impõe, como é que nasceu o gosto pela escrita?
A escrita sem aludir a aspetos técnicos, surge de um modo efusivo, entusiástico e razoavelmente conseguido através de desafios pontuais e isolados em termos de contexto temporal. Por exemplo, um momento ocorrido na frequência do ensino secundário como resposta a uma questão simples, «Quem és tu?», no decorrer de um teste de filosofia. A resposta dada através de duas folhas de ponto motivada de forte fluidez, conseguiu um elogio razoável ao conteúdo iminentemente poético sobre o sentido da vida e o modo como a encarava. Escrevi sobre sonhos, projetei os mesmos ao longo do tempo, desfilei a personalidade introvertida e encerrei com uma expressão iminentemente matemática, “Como queríamos demonstrar.” Porém, acrescentei, “neste contexto não se pode racionalizar matematicamente”. Outros momentos pontuais se seguiram, no decorrer da vida.
No entanto, realço que o gosto de escrever surge através de momentos profissionais, nomeadamente a expressão escrita de assuntos matemáticos, estatísticos. Por exemplo, o livro publicado pela Edições Sílabo foi escrito sem soluços e de forma pragmática.
O gosto pela leitura começa no final da infância com a oferta de um livro muito bonito que ensina as melhores jogadas de xadrez. Os meus pais ofereceram-me o bem tão precioso. O livro é lindíssimo. A leitura de livros sobre assuntos que gosto ou escritos de forma sublime tornou-se, antes da adolescência, um consumo entusiástico. Por exemplo, na frequência do 10º ano no decorrer das aulas de Português, estudei e dissequei com gosto a obra-prima de Eça de Queiroz, «Os Maias». A leitura das descrições dos locais e das personagens capacitava a vivência lida como se estivesse a ver o que lia.
2. Como surgiu o ímpeto de escrever esta obra e de a partilhar com público?
De facto, como explicar um conto baseado numa autobiografia, contado em conformidade, na primeira pessoa do singular? Como explicar a narração, embora embelezada e romanceada em termos de alguns locais e momentos temporais, de acontecimentos passados há mais de vinte anos?
Desde criança que tenho algumas características singulares; as mesmas não tornam a vida mais ou menos difícil. No entanto, permite o resguardo de momentos ímpares, positivos ou negativos. Com efeito, a introspeção, o excesso de responsabilização sentida ainda decorria a idade mais santa da vida, a infância, a menor capacidade de exposição verbal ou escrita das ocorrências que foram selando a vida, marcaram de algum modo a forma como vivenciei e senti a caminhada da vida. O íntimo depositou vagas de ondas e quando o baú se abriu, uma forte corrente eclodiu em diversas folhas de papel.
O convívio colegial fortíssimo, a amizade muito ancorada e o amor que me uniu a uma mulher extraordinária numa história de exaltação, contada na parte I, foram os primeiros passos para a descoberta de uma característica humana necessária, para mim, para fazer pontes além do contexto familiar. Com efeito, recebi um coração aberto ao diálogo, à descoberta de sentimentos como o amor e o elo forte. A sua partida em estado de consciência despertou um regresso aos modos já conhecidos e censurados de forma militar, apagando a espontaneidade e uma vez mais a capacidade de verbalizar.
Um segundo momento, contado de forma mais tranquila, na parte II e III de «O café Indígena», celebrou-se através do convívio muito salutar, profundo e cuidado dado por uma moça amiga, cuja partilha devo a constatação do rejuvenescimento da capacidade de amar. Do mesmo modo, uma outra amiga, com quem celebrei contrato de amizade de forma célere, “reivindicou” o achado guardado no baú. A verbalização tornou-se desejada.
Esse ímpeto causado pela vontade de contar às duas mulheres em causa, foi determinante para a recompensa que encontro no bem que mais gosto e que desta feita, não sendo sobre assuntos técnicos teve a “pena” a escrever sobre a minha batuta e o meu compasso musical.
Um terceiro momento, surge quando já me encontrava com capacidade de organização de tudo o que saiu do baú em termos de memórias filtradas e logo fechadas a cadeado, sem qualquer processo de exposição verbal ou escrita.
Em conformidade, quando fui docente de estatística no Instituto Politécnico de Bragança, sofri um acesso de arritmia devido ao frio transmontano. A descompensação provocada pela aceleração cardíaca foi tratada num determinado hospital. A médica que tratou de colocar o relógio do corpo em hora regularizada e calendário mais sereno, manifestou uma fortíssima empatia.
Com efeito, pediu a escrita sobre a paixão a Coimbra e às ciências exatas, “em duas ou três folhas A4”. A receita teve sucesso e após a valorização atribuída, foi aceite o pedido de incremento do número de folhas A4.
Por fim, no dia 1 de junho de 2020, em plena pandemia causada pelo SarsCov2, e após o regresso da cidade do Porto, em momento de fortíssimas restrições decretadas pela Direção Geral de Saúde, para proteger a minha mãe de eventual contacto com o vírus, decidi hospedar-me de modo a isolar-me durante os cinco dias recomendados pela identidade mencionada.
Foi deste modo, que reentrei num determinado espaço de hotelaria, ganhei coragem e desci a um local onde fui muito feliz há mais de trinta anos. Nessa tarde, escrevi a parte I, a mais difícil de todas.
3. Como correu o processo de escrita desta obra. Partilhe connosco um pouco sobre essa experiência?
O processo de escrita foi demorado e necessitou de amadurecimento sólido e consolidado das ocorrências, romanceadas em termos da parte I, relatadas em «O café Indígena».
No entanto, a escrita da parte I, apareceu no computador ao final da tarde do dia referido. As páginas que sucedem à mesma, não necessitaram de quaisquer soluços interiores e foram escritas em pouco mais de um mês de um modo célere e sem usar rabiscos na escrita feita em papel ou a tecla “delete” do portátil.
Claro está, a revisão do texto foi alvo de aturada reflexão. A questão mais pertinente que roubou meses em termos de calendário, esteve no objetivo da elaboração do manuscrito, premissa ancorada em todo o seu processo de escrita em geral. Após dúvidas, arranques e travagens bruscas, decidi que a parte I desenvolvida em «O café Indígena» constituía uma homenagem e um tributo a um ser humano extraordinário que trilhou a minha vida em carris de alegria, expostos num conjunto de sonhos, que constituem afinal, a razão da minha vinda ao mundo. A decisão de publicar necessitou de uma salvaguarda estabelecida ao início do processo de escrita, o resguardo da identidade da moça que descansa a eternidade.
Por fim, a avaliação descrita pela editora que muito estimo, constituiu o último momento para a decisão de avançar com o processo de publicação. Como última etapa, formou-se nevoeiro na escolha do tema do manuscrito. O café Indígena existe e foi uma peça fundamental em termos de resiliência na luta pelos sonhos adquiridos. O espaço representa a vivência e a mesma consolida de igual modo, a bela cidade de Coimbra.
4. O Café Indígena realça tudo aquilo que a vida tem de interessantíssima – a possibilidade de lutar por um projeto de vida ou sonho, com trilhos mais difíceis, tornando-se um rio que se desvia de dificuldades e provações.
De onde surgiu a vontade de falar sobre a importância da comunicação?
Quando o íntimo é colocado a expressar-se, sobre o que foi prescrito há vários anos, por interiorização fortíssima e pouca verbalização, existe a necessidade de amadurecimento das ocorrências e episódios narrados. É a premissa, o teorema matemático demonstrado pelos gregos da Antiguidade.
O desejo em abordar a importância da comunicação nasce através dos factos narrados na parte I. A abordagem tão segura e cheia de completude em afeição, amizade, amor, valorização e empatia, realçada nos capítulos referidos do livro, constituiu o primeiro passo, vivido ainda na adolescência. A ponte estabelecida de modo apurado, pela primeira vez fora do seio familiar, foi determinante.
A compreensão do significado e importância da característica “empatia”, foi importantíssima nesse processo. Um segundo momento, catalisador para a aprendizagem dos benefícios de uma comunicação eficaz, surge com um mal-entendido provocado por comunicação pouco capaz, que motivou as ocorrências narradas na parte II e III. A destruição de um bem humano tão importante e referido por Aristóteles de modo muito perentório, a amizade, que registei de duas moças, num elo forte de empatia, cuidado, valorização e afeto, através de uma comunicação muito pouco eficaz na explicação de um contratempo que dificultou a capacidade da fala, foi um episódio que causou tristeza acentuada. Para mim, uma relação entre duas ou mais pessoas que atinge e flui em dinâmicas proactivas recheadas de comum desejo de bem-estar e felicidade, é uma riqueza ímpar. Afinal, é através da comunicação que se faz a partilha do que somos e a celeridade na criação de pontes.
Do mesmo modo, a aprendizagem e “luto” da ponte outrora estabelecida, levou à consolidação da importância da comunicação e, de igual modo da consciência do relevo da característica de empatia.
5. Quais são os seus projetos para o futuro? Os leitores poderão contar com novas obras e dentro do mesmo registo ou prepara algum desafio?
A escrita de um outro manuscrito, já em fase de revisão, é um complemento ao projeto «O café Indígena». O registo é diferenciado na medida em que já foi possível a escrita como narrador. O manuscrito já tem nome.
Não foi feito o luto da escrita de «O café Indígena». Não existe necessidade de valorizar de novo um conjunto de ocorrências, mas de um modo mais soberano e amadurecido, enaltecer as respetivas aprendizagens a nível humano, nomeadamente a mais-valia de um ser humano, ou seja, a capacidade de sonhar e a resiliência necessária para a consolidação dessas ilhas de paisagem artística chamadas “sonhos”.
O segundo manuscrito é, então, mais amadurecido, com uma escrita mais solidificada, solta e confortável. O ato de escrever é prodigioso e requisita domínios que o autor ainda carece, mas que busca e procura angariar.
6. Qual a mensagem que gostaria de partilhar com quem nos está a ler?
A questão é importantíssima na medida em que a resposta carece da essência, ímpeto e motivações que levaram à escrita do manuscrito. A mensagem que gostaria de deixar tem de estar em sintonia e em perfeita harmonia com o compasso musical estabelecido em «O café Indígena».
Com efeito, é uma mensagem de esperança, regozijo por este dom que é a vida, saudação pela fortuna que constitui o brinde mais importante, a salvaguarda da saúde física e mental, mas de igual modo a importância que a capacidade de sonhar detém para o ser humano. E, se Marte se afigura distante, a resiliência e a capacidade de rumar como um rio contra os obstáculos, com as virtudes e fraquezas que, são afinal, as bagagens humanas mais ricas na vida de cada um de nós, podem constituir as chaves de ignição mais enriquecedoras.
Por fim, uma chamada de atenção à salvaguarda das questões mentais e necessidade, sem receios ou complexos, de pedir salvaguarda aos profissionais na área de psicologia, terapia da fala e psicoterapia, quando necessário. O estresse pós-traumático afigura-se uma gota de água no oceano das dificuldades da vida de um ser humano. No entanto, carece de cuidados.
